Idealizado pelo Governo Federal e coordenado pelo Ministério da Defesa, o Projeto Rondon é reconhecido como o maior programa de extensão universitária do Brasil. A iniciativa reúne instituições de ensino superior e mobiliza professores e alunos em ações voltadas para o desenvolvimento sustentável, cidadania e inclusão social em áreas remotas. Na mais recente edição, chamada Operação Amazonas, o projeto envolveu mais de 270 participantes que atuaram em 12 municípios ribeirinhos do estado entre os dias 8 e 25 de julho.
Presente no Rondon desde 2005, a Universidade Tiradentes (Unit) marcou presença novamente, sendo a única representante do Nordeste aprovada na seleção nacional deste ano, alcançando a sexta posição entre as 24 universidades participantes. A docente do curso de Gastronomia e uma das responsáveis pela equipe, Isabelle Brito, relata que, além dos obstáculos logísticos e emocionais, como longas viagens e diferença de fuso horário, a riqueza cultural local exigiu um olhar sensível e empático por parte da equipe.
“Foi um impacto evidente. Fomos recebidos com tanto afeto que nos tratavam como celebridades. Houve relatos de pessoas que disseram que só recebem visitas durante eleições. Levamos escuta, acolhimento e conhecimento. Mais do que ensinar, aprendemos muito com eles. Envolver todos os alunos nesse processo foi fundamental, e isso os tocou profundamente. Tenho certeza de que serão profissionais mais sensíveis, empáticos e conscientes do seu papel social”, relata Isabelle Brito.
Transformação e impacto
Entre os professores participantes, Nivaldo Souza Moscoso, do curso de Direito, ressaltou a importância do trabalho coletivo e da superação do olhar técnico isolado. Ele pontua que a convivência com profissionais e alunos de outras áreas e instituições gerou uma troca significativa de experiências e aprendizados.
“Enfrentamos situações muito mais duras do que qualquer leitura poderia antecipar. Em lugares onde o Judiciário sequer chega, nossos estudantes levaram noções de cidadania, direitos básicos e promoveram mediações comunitárias. Nessas regiões, a Constituição muitas vezes não passa de um documento sem aplicação prática. Ver nossos alunos atuando como agentes de transformação é a essência da extensão universitária”, reforça.
Nivaldo também compartilha um momento marcante durante uma atividade de justiça restaurativa na comunidade de Terra Preta do Limão. “Apresentamos conceitos como comunicação não violenta e mediação de conflitos, e a resposta foi emocionante. Um líder comunitário nos disse que queria que sua comunidade passasse a enxergar os problemas com os ‘olhos de girafa’: com empatia e uma visão mais ampla. Esse símbolo ficará para sempre conosco. Foi uma missão de grande responsabilidade. Não levamos apenas o nome da Unit, mas de todo o Nordeste”, completa.
A experiência no Amazonas também foi repleta de episódios inesquecíveis, alguns desafiadores e outros inusitados. Isabelle relembra as dificuldades para transportar os colchões, que exigiam levar não só malas, mas também o local de descanso por longos trechos de barco e subidas íngremes. Um caso divertido envolveu a fruta cupuaçu de várzea, típica da região. “Todos queriam levar polpas para casa. No fim, 30 polpas fizeram uma viagem de seis horas de barco, foram armazenadas no freezer de um quartel em Manaus, e ainda enfrentaram dificuldades no aeroporto. Mas a nordestina aqui não desistiu”, brinca.
Cuidado com empatia
Maria Fernanda de Souza Silva, aluna de Medicina da Unit, atuou nas áreas de saúde e cidadania, promovendo oficinas práticas sobre triagem, primeiros socorros e discussões sobre a saúde da mulher. Durante o “Circuito de Saúde”, foi profundamente tocada por um gesto simples. “Após o atendimento, uma senhora de 69 anos me abraçou e disse ‘você me trouxe paz’. Ali percebi o verdadeiro valor do cuidado humanizado. Às vezes, mais que um procedimento, o acolhimento é o que faz a diferença”, afirma.
Maria Fernanda também observou os principais obstáculos enfrentados pelas comunidades, como a dificuldade de acesso à saúde na Vila Augusto Montenegro. “A distância até o município de Urucurituba já é um grande empecilho, somado à escassez de informações básicas sobre cuidados preventivos. Isso dificulta o acompanhamento médico regular e mostra a urgência de ações mais acessíveis nas áreas isoladas”, destaca. A vivência mostrou a ela que a atuação multidisciplinar tem mais impacto, e que o conhecimento acadêmico só faz sentido quando vem acompanhado de sensibilidade e escuta ativa.
Essa percepção de vulnerabilidade também marcou Lívia Maria Rocha Santos, estudante de Direito. Ela liderou atividades sobre enfrentamento à violência doméstica, direitos ambientais e mediação de conflitos. “Há muito desconhecimento sobre as leis. As pessoas muitas vezes cometem infrações sem saber. Mas o vínculo emocional foi forte. Uma criança até disse que queria me ter como mãe. Isso me deu ainda mais motivação”, relata.
Para Lívia, essa foi uma das experiências mais intensas que já viveu. O contato direto com a população foi o ponto mais significativo. “Fui bem acolhida por todas as famílias. Essa experiência me mostrou que o conhecimento da universidade precisa ultrapassar seus muros. Foi um divisor de águas para mim, pois comecei ali a minha trajetória profissional, atuando na minha área com apenas outro colega”, compartilha.
Superação e olhar social
Paulo Vitor de Andrade Araújo, aluno de Fisioterapia, viveu momentos marcantes durante sua participação, desde oficinas de primeiros socorros até atividades com crianças sobre educação ambiental. Ele realizou treinamentos em diversas comunidades, usando bonecos de simulação realística da Unit, e visitou famílias em situação de extrema precariedade. “Fomos a uma casa sem paredes, sem fogão ou geladeira. A mãe tinha transtornos mentais e a filha, sérios problemas de saúde, que só foram encaminhados graças à nossa presença. Essa realidade nos obriga a rever tudo o que sabemos. A cada passo, eu agradecia por estar ali”, relata.
Paulo também contribuiu com a jornada pedagógica de Urucurituba e relatou a gravidade dos problemas locais, como violência sexual infantil e até tráfico de órgãos. “São questões difíceis, mas que precisam ser enfrentadas. A nossa presença levou cuidado e atenção a crianças que só queriam brincar. A falta de estrutura afeta até a educação. Uma professora me contou que só ensina até a letra ‘N’ porque, na seca, os barcos não conseguem chegar à escola”, compartilha.
Ele reforça que a extensão exige reinvenção e que o trabalho em grupo foi essencial para o êxito da missão. “Falei sobre temas fora da minha área, como direitos, saúde mental e cultura. Sem a união do grupo, não teríamos conseguido. O que mais nos marcou foi o desejo de aprender, de conhecer os próprios direitos e aproveitar os recursos locais”, conclui Paulo.
Legado e continuidade
Os efeitos da Operação Amazonas vão além do tempo em campo. Isabelle Brito destaca que foi elaborado um relatório completo com um diagnóstico das situações vividas nas áreas de educação, saúde, direitos humanos e cultura, junto de propostas práticas para cada localidade visitada. O documento foi entregue aos gestores locais e já está trazendo resultados, como o intercâmbio com Cajueiro da Praia (PI), voltado à criação de um modelo de turismo de base comunitária. “Apresentamos tudo ao prefeito e à vice-prefeita, discutimos cada ponto. Em alguns casos, citamos famílias em vulnerabilidade que precisam de atenção urgente, seja do Conselho Tutelar ou de outros órgãos da rede de apoio”, destaca.
A continuidade do projeto será garantida pela criação oficial do Núcleo Rondon na Unit, que assegura a permanência da iniciativa e a formação de novas equipes, mantendo o vínculo com as comunidades. “Capacitamos as Secretarias de Educação, Saúde e Segurança Pública, para que os profissionais possam replicar o que aprenderam. A ideia é dar continuidade ao repasse de conhecimento e motivar mais alunos a participarem de futuras operações, vivenciando essa experiência transformadora e compreendendo o impacto da extensão universitária na prática do que é aprendido em sala de aula”, finaliza Nivaldo.
Por: Laís Marques
Fonte: Asscom Unit
